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20/02/2020 11:37

Carta Aberta ao Prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro

 

Senhor prefeito Emanuel Pinheiro, o Ilè Okowoò Asé Ya Lomin'Osà, através desta carta, demonstra repúdio à declaração dada ao site de notícias Olhar Direto, intitulada: “Emanuel acusa vereador de ir em centro de macumba para colocar seu nome na boca do sapo”. Na notícia veiculada destila-se a teoria que permeia o imaginário social: a de que o inimigo é sempre o outro. E nesse caso, senhor prefeito, o outro somos nós, cidadãos brasileiros tidos como de segunda categoria por traços genéticos e culturais não eurocêntricos, ou seja, pele não branca ou crença não cristã. E olha que esse mecanismo, de ter o diferente como inimigo, foi naturalizado no passado histórico da humanidade, onde pessoas nas condições acima citadas foram torturadas e mortas.
O pensamento europeu, que se autodenominou superior aos demais, taxou todos que diferiam dele como inferiores, resultando dessa prática o total desinteresse em sequer ouvir sobre o outro pelo outro. Culmina desse ato, que pessoas que nunca foram a um templo de religião afro-brasileira tornam-se especialistas nesses cultos, como demonstram em livros, palestras ou similares. Para conseguirem tal intento, estes especialistas alimentam-se do pânico que a figura do diabo, agente punitivo da ação humana não condizente com os valores cristãos, e que tira toda responsabilidade do ser humano sobre seus atos, causam nos que nele acreditam. Todavia, precisamos deixar claro, senhor prefeito, que este ser, por nome comum de DIABO, é inexistente na religião de matriz africana, mas especificamente o candomblé. Em nossa fé cada um responde pelos seus atos, e não há no outro, seja divino ou humano, a culpa daquilo que plantamos, logo em nossa fé cremos que a única coisa que pode afetar seu mandato são as consequências dos seus próprios atos enquanto gestor.
E se o senhor acha que ainda é cedo para classificar sua fala como racismo religioso, aprofundemos mais um pouco. Tomando o significado da palavra pagão, que pode ser consultado em dicionários[1] ou na internet[2], o senhor verá que a designação enquadra toda e qualquer religião que não adere ao fundamento do batismo, específico da Igreja Católica. Ora, o Brasil como um país formado por vários povos, inclusive indígenas, não tem como inimigos outros deuses que não os africanos e afro-brasileiros. Nesse sentido, parece estranho Thor, Ganesha, Afrodite, Tupã, entre outras divindades que em geral que não adotam o batismo cristão, não adentrarem um templo estranho, igrejas cristãs, e possuir o corpo de ocupantes e fazerem parte do circo dos horrores ali encenados. Especificamente no caso das divindades africanas e afro-brasileiras, nos causa espanto o preterimento que estas fazem dos templos destinados a elas, locais onde as mesmas são reverenciadas e cultuadas, pelas igrejas que as execram.
            Nesse sentido, se o vereador citado na reportagem conseguir por intermédio da “macumba” que a gestão do senhor não dê certo, podemos considerar que esta ação teve uma dualidade? Ou seja, benefício para ele e malefício para o senhor? Nesse raciocínio, caso numa eleição entre dois candidatos ou mais, para prefeito, governador ou presidente, por exemplo, o candidato X vai a templos religiosos e recebe do líder/sacerdote óleos ungidos, sal bento, entre outros, culminando em sua vitória, podemos dizer que houve também uma ação dual? Haja vista que o vencedor foi agraciado pela benesse ao passo que o perdedor pelo malefício? O candidato derrotado pode acusar o vencedor de, em conluio com o líder/sacerdote, e este em conluio com o deus cristão, ter influenciado na vitória de seu oponente? Neste momento surge também outro questionamento, visto que a vitória eleitoral seria uma dádiva divina, de um deus hegemônico, à qual deus devemos dar o mérito dos escândalos de corrupção espalhados pelo brasil, será que é algum elemento da religião afrodescendente que obriga políticos a colocarem dinheiro público em seus paletós?!
Concluindo, esperamos que o senhor, como vencedor, aprenda a exercer seu cargo e legislar com os também vencedores nas outras esferas públicas e que assuma seus erros sem culpar os adversários e os demais deuses que não o seu. Esperamos também que o senhor, como servidor público, trabalhe em prol da população que, de uma forma ou de outra, está à margem da sociedade, pois caso não tenha conhecimento, vários templos de religiões de matriz africana e afro-brasileira foram depredados por intolerância religiosa. Intolerância que se alimenta de discursos midiáticos, em geral de pastores neopentecostais, e de autoridades como o senhor, que vincula ações de seus oponentes políticos a religiões que já são estigmatizadas e massacradas diariamente. Com isso, aprenda que como gestor de uma importante cidade, seu trabalho é torná-la melhor para todos, e isso não será fazendo discursos que podem custar à vida de pessoas de outras religiões que não a cristã, e para além disso aguardamos também uma retratação pública e políticas de combate à intolerância religiosa,  que é o mínimo que o senhor como autoridade municipal deve fazer para tentar se desculpar com todos os religiosos de matriz africana que habitam na cidade dirigida por ti.
 
Babalorixá Bosco D’ Xango e Comunidade
 
Referências
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. Curitiba. Editora Positivo, 2008. 
WALDYR, Imbroisil. O espaço dos homens na feitiçaria: feiticeiros na literatura brasileira do século XIX. RECOOORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 10 - N.º 1 (janeiro-junho - 2013).
 
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[1] pa.gão adj. sm. 1.Que ou quem não foi batizado. 2.Que ou quem é adepto de qualquer das religiões em que não se adota o batismo. [Pl.: – gães. Fem.: pagã] (AURÉLIO, 2008, p.602).
ba.tis.mo sm. 1. Rel. Sacramento da Igreja Católica, no qual a ablução, a imersão ou a simples aspersão com água significa purificação. 2. Rel. Administração desse sacramento; batizado. 3. Ato de dar nome a uma pessoa ou coisa. 4. Cerimônia de lançamento de navio, avião, etc., no qual estes são benzidos solenemente (AURÉLIO, 2008, p.170).
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Paganismo, acessado em 19/02/2020, às 15:24.

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