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02/03/2020 22:39

Iniquidades Raciais na Saúde por Gilda Portella

O Doutorando em Educação, Enfermeiro, Valdeci Silva Mendes, foi um dos fundadores e o primeiro Coordenador do Coletivo Negro Universitário da UFMT. Ele coordenou o Coletivo Negro justamente no mesmo período em que cursou o Mestrado em Educação em 2013, nesta mesma instituição de ensino superior, aqui em Cuiabá.  É autor do livro: "Ensinar a cuidar em enfermagem: uma abordagem étnico-racial, histórica e contemporânea”, publicado e lançado no ano de 2019. Livro este que é o resultado de sua pesquisa concluída em 2015.

No livro, nas partes introdutórias e teóricas, o autor apresenta uma exposição dos cenários de pesquisas educacionais na história da profissionalização da enfermagem no Brasil e em Mato Grosso. O autor ao analisar esse cenário historiográfico apartir de uma abordagem étnico-racial, problematiza o racismo na enfermagem e a partir dessas problematizações defende seu objeto de pesquisa. Nessas analises, o racismo é evidenciado na profissionalização da enfermagem no Brasil; na história da institucionalização dessa área de conhecimento.

 Já nas análises proveniente de dados de campo empírico, núcleo do livro, o autor demonstra como racismo se compõem nas estruturações curriculares de um Curso de Enfermagem em uma Universidade Pública no Estado de Mato Grosso. Nesse diagnóstico revela, além do racismo na construção histórica do currículo do curso, bem como também esse mesmo racismo se conserva nos dias atuais e é vivenciado nas relações inter pessoais entre os professores e alunos, entre eles, entre si no conjunto, compondo o cotidiano acadêmico, repercutindo drasticamente no ensinar a cuidar, desde as escolhas e abordagens teóricas utilizadas em sala de aula, as aulas práticas e na realização dos estágios curriculares.

Ele comenta: “na leitura da história da profissionalização da Enfermagem no Brasil e no mundo, fiz um recorte da literatura em uma abordagem étnico racial e encontrei várias ocorrências racistas em nível mundial, nacional e local. Por exemplo: a história da Florence Nightingale, mulher inglesa, branca, que foi para a Guerra da Criméia, e paralelo a história relatada dela, também, na Guerra da Criméia, vamos ter a história de Mary Seacole, enfermeira jamaicana, negra. Ela não consegue pelo governo inglês irà guerra, e foi dispensada por Florence por ser uma mulher negra, mas finalmente, com recursos de arrecadações ela consegue ir. A construção história da enfermagem dá ênfase à história da Florence, reconhecendo-a mundialmente, como responsável pela enfermagem moderna, título esse, resultado dos financiamentos a ela promovido, favorecendo seu auge. Já por outro lado, esquecem Mary Seacole que também teve sua importância na guerra e consequentemente contribuiria para evolução da ciência da enfermagem, mas por conta do racismo é invisibilizada, esquecida e ocultada na história mundial.” E aqui é cometido, o que alguns autores denominam como epistêmicídio de um grupo étnico-racial para que outros grupos sobressaiam

Ao centrar a atenção para o início da profissionalização da enfermagem no Brasil, depara-se com estruturas institucionais, políticas, sociais e educacionais, promovidas por personagens políticos e científicos (médicos sanitaristas, higienistas) que se fundamentam em conceitos das pseudociências/teorias racistas/eugênicas para a construção profissional dessa área de conhecimento. O campo de formação e saber se reproduzirá e cristalizou conceitos e práticas racistas na profissionalização da enfermagem e com essas definições materializa o que hoje se define como objeto de trabalho da enfermagem – o cuidado humano.

A estrutura racista, que alicerçou o “conhecimento” e concepções teóricas da profissionalização em enfermagem no Brasil, atravessou gerações e se reproduz com refinamento da época atual no primeiro Curso de Enfermagem de nível superior em Mato Grosso, absorvendo as teorias racistas européias, desencadeando uma forma de raciocínio que reproduz em prejuízo aos afros descendentes na sociedade, com qualidade de assistência em saúde diferenciada. Não é por acaso que há iniquidades raciais à saúde da população negra e a enfermagem não está isenta de reproduzir práticas racistas na assistência em saúde.

Na percepção míope, homens e mulheres negras não eram bem-vindos à formação profissional em enfermagem, considerada padrão e nem comportaria componentes importantes da nação brasileira. Além disso, ao absorver as ideias eugenistas vinculada ao ideário republicano, criou-se uma crença, que naturalizou o cuidado em enfermagem como praticada de forma igualitária, neutra e imparcial, independentemente da cor dos pacientes e isso limita, blinda as percepções e reflexões dos professores, alunos e profissionais de saúde e enfermagem a fazerem justiças sociais.

Com a criação das primeiras Escolas de Enfermagem e sua profissionalização no Brasil em 1920, teremos duas ocorrências importantes, segundo Valdeci: “Nas Escolas de Enfermagem desse período, havia uma exclusão de homens e mulheres negras. Por isso, a enfermagem nos dias atuais e pela história, parece ser uma profissão vinculada a uma pratica quase que exclusivamente de mulheres brancas. Isso ocorre não como um processo natural histórico. O Brasil vai adotar uma política de exclusão de homens de qualquer etnia é um artifício eugenista de branqueamento da enfermagem, a partir da profissionalização seletiva e a historiografia contribui ao omitir que antes da profissionalização, o cuidado era exercido, em sua maioria por mãos de mulheres e homens negros.

Há autores que sinaliza, que no período escravocrata, os espaços de cuidado institucionalizados, por exemplo, nas primeiras Santas Casas de Misericórdia no Brasil, vamos ter mulheres e homens negros em condições de escravizados ou não, que realizavam “o cuidado”. Porém a história não mostra esta realidade. A historiografia faz um recorte da história da enfermagem a partir das primeiras Escolas de Enfermagem no Brasil, que resistiam à presença de candidatas negras, nesse contexto criou-se uma hegemonia de mulheres branca na enfermagem, representando um monopólio, em que a condição de raça e gênero foram dois elementos importantes a definir quem deve ou não ocupar esse espaço profissional.”

A construção da identidade profissional da enfermagem foi sendo então forjada com base em conhecimentos eurocêntricos, que já compunham a teia social, privilegiando brancos e excluindo negros, estes últimos tematizados como impróprios à nação e ao acesso a profissão em enfermagem.

Na pesquisa, Valdeci analisa os registros históricos e identifica que o Curso de Enfermagem em Mato Grosso, se enquadra nessas ideologias racistas e eurocêntricas, e não se volta de forma adequada para o ensinar -cuidar de pacientes negros, em prejuízo das determinações da Constituição Federal, que impõem a igualdade para todos.

No livro ”Ensinar a cuidar em enfermagem: uma abordagem étnico racial, histórica e contemporânea” Valdeci relata: Minha pesquisa de mestrado encontra um currículo extremante eugenista: uma ideia que os negros estão à condições de doentes, e o cuidar da enfermagem, seria uma das utilidades cientificas para cura, com discursos e teorias de branqueamento desta população. É nítido que com esse discurso e teoria, a currículo da enfermagem absorveu as ideias eugenistas. Ademais, ao refletirem sobre a saúde da população negra caminham a promover um ensino numa perspectiva unicamente patológica. Não reconhecem que o racismo é um fator negativo, implicador na qualidade de vida e saúde dessa população, atingindo-a de uma geração para outra, limitando as possibilidades de desenvolvimento econômicos, consequentemente sociais, educacionais, retirando-lhes as condições mínimas de sobrevivência.

Há uma exclusão histórica em relação a essa população por conta do racismo; isso faz com que ela tenha uma vulnerabilidade maior às doenças, só que o ensino da enfermagem nega essa abordagem e desconhece suas estruturas racistas.  Ao abordar a saúde da população negra, limitam-se há uma ideia patológica, um tipo de racismo, como sinalizei, de racismo biológico, uma tipo de racismo que ainda perpassa, infelizmente a formação na enfermagem”.

Outra questão importante ressaltar é que, essa matriz teórica e curricular da medicina eugênica, os modelos de ensino excludentes, a própria história e a política da formação dos profissionais da Enfermagem compuseram uma estrutura de base racista de eliminação dos negros do cenário das ciências da saúde, quer na condição de sujeitos ou autores sociais. Há os que superaram o racismo e se impôs, conseguindo se formarem  nesses espaços que os excluíam, quer na condição de produtores desta área de conhecimento, quer na condições de atuarem na assistência e não serem reconhecidos socialmente.

A pesquisa identificou ainda que os profissionais docentes e discentes em enfermagem do curso pesquisado em 2014, não possuem conhecimento das relações étnico-raciais na saúde e ignoram essa temática ao ensinar a cuidar em enfermagem e perpassam, ao problematizar a saúde da população negra, apenas tematização pacientes negros como potenciais patogênicos a certas doenças, reforçando o racismo na sociedade.

Os programas de formações exaltam as novas representações da enfermagem voltada apenas às práticas preventivas e profiláticas. Levantamento no site da UFMT, na Pós-Graduação em Enfermagem, ao pesquisar: quilombo, relações raciais, escravos/escravizados, negros e racismo e selecionar um dos itens por títulos, resumo ou palavras chaves o resultado é ZERO por cento nas publicações de dissertações, teses e livros que fazem menção a relação racial e saúde.

A mesma busca no site Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC) da UFMT, entre as cem publicações, tem apenas duas com temática sobre anemia falciforme, representando 2% da produção cientifica e é relativa às práticas de prevenção ou de profilaxia. Os títulos das dissertações são: “Experiência de Adoecimento Crônico: adultos que (con)vivem com anemia falciforme” e "A gestação em meio à anemia falciforme: experiência de mulheres negras". E possui duas dissertações com a palavra quilombo, que segue os títulos: “Hipertensão Arterial e Fatores Associados em População Remanescente de Quilombo de Mata Cavalo - Mato Grosso” e “Quilombo Morrinho: espaços sociais e estratégias para o reconhecimento do território e a apropriação das políticas públicas de saúde”, isso representa 2% do que e catalogado representando as temáticas étnico-racial relacionadas à saúde.

A dissertação Aprendizagem da Arte e Ciência do Cuidar em Enfermagem na UFMT: uma Abordagem Étnico-Racial”, título da pesquisa do Valdeci, que se reportou à condição de livro, acima mencionado, é um marco teórico-conceitual importante nos estudos e pesquisas da educação das relações raciais, na formação acadêmica das diversas áreas da saúde e na enfermagem. É um livro fundamental para a formação nos cursos nas áreas da Enfermagem e da Saúde, serve também como fonte de análise da realidade racial brasileira, aos movimentos sociais que visam contribuir para o enfrentamento das iniqüidades raciais em saúde e para todos os cidadãos conscientes e que queiram instrumentalizar-se para o enfrentamento do racismo na sociedade brasileira.

O Autor do livro sinaliza que “comecei a interessar aqui em Mato Grosso pela Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá. Estou a concluir a tese de Doutorado em educação. Ao fazer a investigação, encontrei um enfermeiro negro, que exerceu a prática de enfermagem lá por mais de meio século. Tem duas questões importantes a ser discutida nesse achado de pesquisa: uma é racial e outra de gênero. Esse enfermeiro chegou à Santa Casa em 1918, período auge (áurico) em que a enfermagem está se profissionalizando, o governo federal está criando as primeiras escolas de enfermagem para a profissionalização e há uma diretriz não institucionalizada, mas se reproduz pelos os que estavam à frente desse recrutamento: não se admitia mulheres negras, mesmo elas tendo todas as condições de ingresso e muito menos homens de qualquer etnia/raça como alunos.

Houve-se uma construção social “aceitável”de que ‘esse lugar de cuidar’ é uma característica exclusivamente do sexo feminino. Isso me incomodou bastante, porque eu sou um homem negro e enfermeiro; parece que esse lugar, não e o lugar para homem, muito menos para um homem negro, como se o cuidar fosse-nos atribuições impossíveis de se realizar.

Eu encontro informações deste enfermeiro, um homem negro que permaneceu na Santa Casa por mais de 63 anos trabalhando como enfermeiro fatos importantes. Essa história dele para mim é muito relevante. Ela tem um poder representativo relevante.  E muito ressaltante para a história da enfermagem. Além da representatividade de grupos excluídos, mas que superaram as limitações que o racismo lhe imputavam, sua história contribuir a rever a narrativa única absorvida nacionalmente, como se a característica do cuidar fosse reversado as mulheres brancas. A história do enfermeiro negro recompõem esse lugar, porque ele tem todas as atribuições, todas as qualidades que se esperava e almeja na profissionalização, reversado como espaço de exclusividade de mulheres brancas, como somente elas fossem capazes desse, considerado a época, “dom profissional”.

Valdeci mostra que as representações históricas da profissão enfermagem e sua construção indenitária profissional, foi promovida por um modelo de ensino excludente e discriminatório. Sua pesquisa abre caminho para novos estudos e análises até então ignorados ou considerados sem relevância social e política.

O autor finaliza, afirmando que à superação do racismo, no campo de saber da arte e ciência do cuidar em enfermagem, em suas práticas profissionais devem iniciar-se por uma educação antirracista, dentre outras ações importantes. Para isso, é necessário compromisso político, social, ético e científico do corpo docente dos cursos de enfermagem no Brasil, inclusive com medidas institucionais ao assumir com responsabilidades as políticas de cotas raciais no ingresso à formação nas instituições de ensino, reconhecendo que historicamente a enfermagem foi estruturada de forma racista a excluir negros e negras”.

 Além disso, os cursos de enfermagem devem adotar em seus currículos disciplinas para uma educação das relações raciais no país, conforme determinação da Lei 10.639/2003, que obriga ter nos currículos conteúdos sobre a história e cultura dos negros no pais, além da Lei 11.645/2008 que trata das questões e cultura indígena, e nessa mesma linha de decisões, incorporar no ensino, na pesquisa, na extensão e na assistência prática, as diretrizes nacionais imputadas pela a Política Integral de Saúde da População Negra.

É um dever essas decisões institucionais, pelo fato de ser Lei e também por reparação histórica. Também por uma questão de justiça e ética ao se reconhecer as iniquidades raciais em saúde na sociedade brasileira, reconhecendo que o racismo mata, decide quem vive e morre.

E igualmente, um dever essas decisões institucionais por uma questão de utilidade pública, por aqueles que dizem produzir ciência e se sustenta no discurso que a produção do conhecimento deve ser de proveito a humanidade, todavia, nesse caso, em relação à população negra, o uso da ciência enfermagem brasileira não tem correspondido de forma resolutiva e produtiva. Em vez disso tem cometidos crimes raciais, historicamente e na contemporaneidade, como comprovado na pesquisa que está sendo ampliada quando da conclusão dessa outra, realizada também no Doutorado em Educação.


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