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01/08/2020 17:09

Quem foi que apertou o botão? Por Luiz Renato Pinto

 

 

 

 

 

 

 

O primeiro subsolo

exala cebolas cruas

recém-cortadas.

São centenas

 

ou mesmo milhares.

 

Eu não sei

 

 

 

onde se guarda uma faca.

Eu não sei de onde vem

 

 

 

repentino

o meu choro.

 

 

“A depressão tem sete andares e um elevador”. Embarco e, à página vinte e três, me deparo com um poema composto de quatro orações, dispostas em cinco estrofes, totalizando dez versos. Uma quadra, um dístico e quatro monósticos. A primeira oração é a única que cabe dentro de uma estrofe. A segunda decompõe-se em duas, a terceira, em outras duas e a quarta também.A primeira parece estacionada, de onde desce. No andar abaixo começa a segunda e com intervalo de dois espaços, desce mais um andar, quero dizer, estrofe. “Eu não sei” -, mais dois espaços e começa a terceira oração que, após três espaços se fecha. Abre-se outra oração e, no verso seguinte, se finda, três espaços depois.

Se fizermos uma análise morfológica das orações, teremos a seguinte descrição:O (artigo) primeiro (adjetivo) subsolo (substantivo) exala (verbo) cebolas (substantivo) cruas (adjetivo) recém-cortadas (adjetivo); a segunda oração: São (verbo) centenas (substantivo) ou (conjunção) mesmo (adjetivo) milhares (substantivo); a terceira: Eu (pronome) (não (advérbio), sei (verbo) onde (pronome) se (conjunção) guarda (verbo) uma (artigo) faca (substantivo); a última: Eu (pronome) não (advérbio) sei (verbo) de (preposição) onde (pronome) vem (verbo) repentino (adjetivo) o (artigo) meu (pronome) choro (substantivo). Somente a última estrofe não apresenta verbo, portanto, a ação desenvolve-se até a anterior, ficando para esta apenas o desfecho.

A primeira estrofe traz o “exalar” da cebola, - verbo que sopra de dentro para fora um possível significado e encontra paralelo na terceira, com “guarda” – verbo que, ao contrário do primeiro, remete para dentro, apresentando um contraste no plano semântico, primeiro estranhamento. As estrofes dois e quatro apresentam a mesma estrutura sintática - ordem direta - com o verbo “ser”, no presente do indicativo, primera pessoa do singular: o eu-lírico. O curioso é que os verbos (de ligação) vêm acompanhado do advérbio de negação – “não”, gerando ações negativas: “Eu não sei” (o que ele não sabe?); Eu não sei de onde (de onde vem, desconhecimento da origem), sugerindo a necessidade de complemento, seja objeto direto e indireto.

Observa-se que entre as duas orações se encontra a chave para a compreensão da mensagem.Duas ações negativas comandadas por verbo de ligação; mas ligando o que a exatamente o que, se ligação?! Talvez o que haja dentro, como o que se expande para fora (é uma pista).

 

Na melancolia, forma patológica do luto, o sujeito soluciona o conflito, não pelo desinvestimento gradual do objeto, mas por sua incorporação psíquica: através da identificação, o objeto perdido se salva, fundindo-se com o Ego, ou parte dele. (ROUANET, 2008, p. 39).

 

Voltando ao inventário morfológico, olhemos para os substantivos: subsolo, cebolas, centenas, milhares, faca e choro. O ato de cortar cebolas, denotativamente provoca choro, é bem sabido; uma basta, o que dizer de centenas e milhares. A faca é o objeto cortante, o que promove as rupturas no substantivo, provocando choro, a substância última, decorrente do ato em si.O encadeamento verbal é preciso e o corte(cirúrgico) se dá no momento em que o verbo pede complemento –, abrindo o espaço dilatado para o enfeixe da oração.

O uso do enjambementé uma tônica de Sancho em todo o livro. Não parece casuístico, pois reflete altos e baixos típicos do processo depressivo, unificando conteúdo e forma no conjunto de cento e dezesseis andares, quero dizer, poemas, do livro.

 

Incidentalmente empregada na Idade Média, a quebra do verso conquistou a simpatia dos poetas nos séculos XV e XVI, quando se disseminou por toda a parte, com relativa frequência. Ronsard cunhou o nome pelo qual o processo veio a ser conhecido. (MOISÉS, 2004, p. 144).

 

O próprio formato do livro tem dimensões que sugerem um elevador, e a ilustração da capa sugere os movimentos de sobe/desce. Poderíamos arriscar algumas perguntas para a compreensão mais detalhada das cenas. O que? cebolas; quantas? centenas ou milhares; onde?subsolo; como?faca. por quê? choro. Quanto aos adjetivos, que servem para caracterizar o substantivo, para dar certa coloração ao texto, temos: primeiro, cruas, recém-cortadas, repentino. Para Robert Burton (1577-1640),

 

A melancolia era, como a depressão, uma doença, mas não só uma doença: era uma experiência existencial. Tristeza, sim, e tristeza duradoura, e talvez até tédio, mas uma condição existencial envolta em uma aura filosófica, o que lhe dava dignidade e distinção. Esta concepção mudará nos séculos seguintes. (SCLYAR, 2003, p. 58).

 

O corte no cru provoca sangramento, ou melhor, a liberação de fluidos, ceio que invisíveis a olho nu, no caso da cebola, mas que liberam ardências que atingem aos olhos. O invisível (aos olhos) não significa ausência, mas velamento. Quando recém-cortada, qualquer substância torna-se desvelada, exposta à visitação pública ecarece de cicatrização. São adjetivos que se referem a processo, que no caso, sugere o caráter de repentino; talvez. Mas, se me apego à sequência entre os binômios substantivo/adjetivo começo a montar o quebra-cabeça semiológico, não sem antes encadear melhor a morfologia do texto.

O uso das conjunções: “ou” e“se” é significativo, se não vejamos. A primeira denomina-se alternativa, encaminhando o leitor para uma situação indefinida. Não se pode quantificar exatamente o problema - ato falho – quero dizer, a quantidade de cortes, ou melhor, de cebolas transpassadas pelo fio da lâmina. E não seria demais lembrar que o corte projeta para a estrofe seguinte seu complemento. A outra conjunção, “se”, impõe a junção entre o pronome relativo (onde) com o verbo que leva para dentro do “eu-lírico” (guarda) o que há de mais profundo no registro escrito e que, certamente provocará o desfecho do poema (choro).

A preposição “de” parece emblemática. No plano do texto,que pretendo sintagmático, sugere a ligação da ação (Eu não sei) construída a partir do verbo de ligação, junto ao advérbio que a nega (ação reiterada) novamente ao relativo “onde”, reforçando a ideia de impermanência, indefinição e desconhecimento, ao menos no plano consciente –eixo paradigmático. A transição de um estado a outro é reforçada por outro binômio, que vai de um polo a outra: os artigos “o” – definido e “uma”, indefinido. O primeiro, masculino esingular; o segundo,também singular, feminino e indefinido. As duas incidências do advérbio “não” reforçam os interditos.

Acontece que Sancho espraia as palavras pela mancha de texto a partir do ritmo que deseja imprimir ao discurso. Ao tentar mensurar o objeto sob o qual se desenha o plano semântico (cebolas), pela própria infinidade que assoma e extravasa de uma estrofe a outra (transbordamento), no plano do texto se demarca pelos encadeamentos apontados.Centenas de cebolas caberiam na estrofe, milhares não. Não se sabe o que o “eu-lírico” pretende dizer (e não diz), apenas refere, e o não dito fica no ar, espaço vago entre um e outro andar/estrofe do poema/construção/obra.

A quarta estrofe, como a segunda e a última, é iniciada com letra minúscula. Aqui o pronome relativo “onde” équem cumpre o papel de índice de indefinição (de lugar); no caso, o local em que se deve guardar o objeto (faca). Não se sabe se está a procura de guardar o objeto de que tem posse, ou se o procura para outra ação. Caso seja a primeira alternativa, o referente foi usado para se cortar cebolas, centenas ou milhares delas, provocando o choro; caso seja a segunda, a faca se relaciona com o choro, mas de maneira distinta, pois implica em ação violenta praticada ou sofrida pelo sujeito. Temos que um conflito interior se instaura em um “eu-lírico” melancólico que

 

passa a ser pura subjetividade, porque desinvestiu completamente o mundo exterior, mas essa subjetividade é por sua vez expropriada pelo objeto, e por uma parte objetivada do próprio Ego. O objeto morto, que continua vivendo subterraneamente sua existência de larva, (ROUANET, 2008, p. 41).

 

imagens decalcadas nas cebolas cortadas da página ao lado que mostram fatias de cebola caindo; e em pequenos feixes; emais abaixo, a cabeça do vegetal - desculpem a catacrese -, já me faltam palavras para expandir as imagens,aproxima-se do chão (da página), sob a qual se percebe o corte derradeiro. “A depressão tem sete andares e um elevador”. Parece que neste ponto ele está descendo. Em direção ao subsolo, ou seria o porão? O inconsciente, talvez. Mas aí já seria outra viagem.

 

REFERÊNCIAS

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008.

SANCHO, Isabela. A depressão tem sete andares e um elevador. Guaratinguetá, SO: Penalux, 2019.

SCLYAR, Moacir. Saturno nos trópicos. A melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

 

Luiz Renato de Souza Pinto

 

 


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