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13/10/2020 01:02

Ciência: entre a negação e o desejo - Edilson Serra

Em consonância com um ambiente de verdades cada vez mais fluidas, têm ganhado força nas redes discursos negacionistas que atentam contra nossas ciências constituídas. Seja na área da Saúde, contra a eficácia da vacina no combate à doenças, seja na Geofísica, a respeito do formato da Terra, seja ainda o negacionismo histórico, que rejeita, por exemplo, ter existido ditadura militar no Brasil ou o extermínio de judeus na Europa por ocasião da Segunda Guerra Mundial.

Feito um julgamento mais detido do negacionismo deste momento em que vivemos, a impressão que fica a respeito do conjunto desses discursos é que, dadas as proporções que têm tomado, há uma mensagem embotada querendo ganhar forma no interior deles. Como em todo negacionismo, não há um discurso aparentemente coeso ou coerente que legitime a desconstrução dos paradigmas de referência. Por outro lado, o que vai ficando cada vez mais latente é que essa descrença precária na ciência – precária por que não se utiliza minimamente de argumentos sólidos, pois deseja mais aborrecer do formular algo – tem o objetivo, ainda que reprimido, de chamar atenção para o tipo insatisfatório de ciência que tem sido oferecida ao montante da sociedade.

O negacionismo que estamos encarando é o usufruto talvez até inconsciente de uma metodologia desesperada e ignorante de chamar atenção da ciência para a vida do ser humano comum, que cada vez mais fica aquém das mudanças significativas que ocorrem no mundo.

À parte toda responsabilização que deve ser dada a todos que se utilizam dessa prática, na contramão do próprio discurso, o negacionismo é o desejo de mais ciência, é a vontade de um salto que ela precisa urgentemente dar, pois o sistema atual, que tem se resumido a meras atualizações, sejam de softwares sejam de hardwares, não têm mais dado conta de sanar os sintomas da sociedade em que vivemos, sejam eles econômico, social, político, financeiro ou filosófico.

As teorias vinculadas à ideia de prosperidade se mostraram frágeis, classistas, enganosas e mais, ainda para aqueles que delas se beneficiaram, insuficientes de dar conta de aspirações e problemas sociais e individuais. A exemplo disso, basta pensar na esperança que a globalização trouxe e que agora, com a Pandemia 2020, sofre terríveis recuos. Mesmo antes do que estamos sofrendo, promessas como o fim das relações entre centro e periferia ficaram apenas na fantasia.

A negação tola da ciência é sempre emendada em uma outra narrativa quase mitológica de superação do status quo, de superação de todo o sistema social, funcionando como um ataque direto, através da narrativa fácil porque simplista, às superestruturas que mantêm a sociedade atual. Essas narrativas, sejam aquelas que acreditam em um outro formato da Terra, sejam aquelas que negam o coronavírus ou as vacinas, apegam-se à narrativas frágeis porque seu principal objetivo não é erigir, mas apenas fazer desmoronar, apontar lacunas estruturais; é um manifesto gritante contra aquilo que mal se entende, que não dá conta intelectualmente, mas que sabe, não cumpre o contrato que pede seu sacrifício em troca de uma vida melhor.

Nessa lógica instaurada nas sociedades em que vivemos, nenhum governo há de se manter perenemente, mas é claro, muitos se aproveitarão desse cenário para conquistar lugares ao sol. Posto isso, esses espaços constantemente serão ameaçados e essas figuras, mais do que costumeiramente, serão forçosamente obrigadas a ceder seus lugares a outros aventureiros. Vivemos em um tempo em que tudo se esvaece rapidamente. Vivemos em um momento de transformação violenta. Não estamos nem lá nem cá. Estamos no meio do pandemônio da transformação e a Pandemia 2020 tratou de ser o estopim – sempre há um estopim – responsável pelo aceleramento dessas transformações de todas as áreas de nossa vida.

Mesmo quando o vírus finalmente ceder – e ele não cederá até que a ciência nos salve – os próximos anos se oferecerão ainda obscuros, terreno cada vez mais fértil para teorias distópicas. Nesse cenário, surgirão mais discursos negacionistas, nacionalistas, antidemocráticos, belicistas e até mesmos desejosos por um tracejado econômico diferente no mapa mundial, motivados pela busca de insumos. Posto isso, cabe à Ciência – e isso clama de forma irritadiça o negacionismo e outras vozes deste tempo – a construção de uma nova realidade.

Realidade que cada vez mais se torna crível, seja por conta do aumento da miséria previsto pela ONU, seja por conta dos novos costumes que abrirão e fecharão mercados inteiros, de necessidades de ordem climáticas ou da possibilidade de conflitos armados.

Por tudo isso, uma expressiva aceleração de descobertas científicas, motivada também pela ciência da pandemia e, sobretudo, motivada por mudanças significativas no modo do ser humano tratar a realidade está à beira, a tal ponto que até os céticos na Ciência clamam por ela. Não é mais possível, coerente ou desejável seguir na forma como temos vivido até aqui. Esta década produz, a olhos nus, outro mundo. Será melhor?

 Edilson Serra, doutor em Literatura (UFRN) com ênfase em Estudos da Pós-modernidade, é professor efetivo no IFMT e coordenador da área de Linguagens e Códigos.


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